Reunidos desde o início de agosto, representantes do governo de Michel Temer e de planos e seguros de saúde finalizam proposta do setor para revigorar sua saúde financeira. A ideia é criar planos de saúde “acessíveis”, uma espécie de proposta pronta, que o ministro da Saúde, Ricardo Barros, defende desde que tomou posse, junto com o então governo interino de Michel Temer, em 12 de maio. A proposta soa também como mirabolante. Afinal, é apresentada como solução para o SUS, que só neste ano viu seu orçamento perder R$ 12 bilhões. No enredo desses planos, segundo o ministro, os mais pobres poderiam aderir e aliviar as filas do sistema público. Só falta ele traduzir: o governo quer resolver o financiamento do setor enviando a conta para os mais pobres. “Será um tiro no pé dado pelo governo ao tentar tirar do bolso da população mais essa despesa”, diz o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ronald Santos.
Famoso por suas pérolas machistas e sexistas que encobrem sua falta de intimidade com assuntos da pasta, Barros apregoa que convênios baratos para a população vão salvar as contas ao injetar de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões por ano na saúde pública. No entanto, faltam estudos a respeito. “Os números, mágicos, só podem ter saído da cartola. Tudo indica o contrário. É um grande negócio para as operadoras”, contesta o economista Carlos Ocké, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde.
A proposta é uma das faturas cobrada por um setor que encolhe. De agosto de 2014 para cá, passou de 50 milhões de beneficiários – os titulares de planos, que podem ter vários dependentes – para 48,3 milhões. É 1,7 milhão de contratos a menos, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Entre os motivos, mensalidades reajustadas acima da inflação e o sucateamento da rede, lotada, com espera semelhante à do serviço público, e problemas de gestão, como no caso da Unimed Paulistana, quebrada há um ano.
Só no SUS
Por essas razões, há mais de dois anos a artista gráfica Michaella Pivetti, 47 anos, de São Paulo, fez carteirinhas do SUS para ela e as duas filhas, de 7 e 13 anos. Consultas com pediatra, clínico geral, ginecologista e outras especialidades, exames e outros procedimentos, só na rede pública. “Ainda não passamos por situação de emergência, mas nossa experiência tem sido boa. Há demora para alguns agendamentos e os postos estão cheios. Mas é assim também nos convênios particulares, cada vez mais caros e de menor qualidade”, diz Michaella. Nascida na Itália, ela compara o SUS ao sistema do seu país. “Serviço público é para atender bem dentro de estruturas básicas. Um serviço para tanta gente é assim em todo mundo, sem luxo. Precisamos de mais recursos para aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”.
A diarista Maria Zenilda Duarte Cabral, de São Paulo, foi para o SUS há quase sete anos, depois do nascimento de seu filho Lucas. “Fui muito bem atendida no pré-natal e no parto em hospital particular, mas ficava caro incluir o Lucas. Como eu usava pouco, preferi parar de pagar”, conta. Lucas é acompanhado pela mesma pediatra, que atende a caçula Isabella, de 5 anos. “Fiz pré-natal e parto pelo SUS, com atendimento igual no particular. O médico do pré-natal é meu ginecologista até hoje.” Ela conta que os filhos fizeram cirurgias para retirada de adenoide e pequenas cirurgias e que não pretende voltar a pagar convênio.
A saúde da população, porém, não deverá ser melhor com os planos de Barros. Para Ronald Santos, do CNS, os planos não serão baratos e nem para todos. “Esses planos de faz-de-conta vão excluir os idosos e quem tem doenças crônicas, que necessitam dos serviços com mais frequência”, diz. Santos teme também pelo desmonte da estrutura atual, com fechamento de unidades de UBS e UPA e demissão de trabalhadores, colocando em risco programas de saúde da família e outras políticas preventivas.
O governo não deu detalhes, mas planos baratos não são novidade. Segundo a ANS, há 2.414 planos ambulatoriais já comercializados, sendo 908 familiares ou individuais, 1.038 coletivos ou empresariais e 464 por adesão. Outros quatro não são identificados pela agência. Há ainda planos em regime de adesão a uma entidade que assina o contrato com a operadora. No começo são baratos, e como têm reajuste fora de regulação, muitas vezes são reajustados pelo dobro da inflação e a operadora pode aumentar o valor quando os usuários passam a usar muito a rede credenciada, por exemplo.
No começo, chegam a custar 40% menos e depois chegam a ter mais de 100% de aumento. Sem poder pagar, o cliente encerra o contrato. “Em geral oferecem consultas e exames simples, ao custo médio de R$ 100 mensais para a faixa etária em torno dos 35 anos, que exige menos acompanhamento do que na terceira idade. As pessoas não compram porque sabem que não cobrem nada e vão ter de acabar indo pro SUS”, diz o professor da Faculdade de Medicina da USP e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Mário Scheffer. A Abrasco, aliás, juntamente com o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Pediatria e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), além de outras entidades, pretendem ir à Justiça contra o governo caso a proposta vingue.
Causa preocupação, segundo Scheffer, a “ponte para o passado” embutida na proposta, mais especificamente aos anos 1990, antes da regulação do setor. “A cobertura era mínima, praticamente ambulatorial. Excluía tratamentos caros, como atendimento a doentes de câncer e de aids, e até aqueles mais baratos, como fisioterapia”, lembra. A regulamentação veio com a Lei 9.656/1998, em vigor desde 2 de janeiro de 1999, que garante o tratamento de todas as doenças listadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID), inclusive quimioterapia, hemodiálise e transplantes. Mas a legislação praticamente foi revogada com a criação da ANS, em janeiro de 2000, que introduziu o conceito de rol de procedimentos obrigatórios. A cada “ampliação”, já há a falsa ideia de mais cobertura. Para o Idec, o rol é ilegal por restringir direitos garantidos em lei vigente.
Negócios
Carlos Ocké, do Ipea, vê outra intenção por trás dos planos populares: a “financeirização” da saúde, já que o grupo de trabalho do Ministério da Saúde inclui representantes da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg). “Como o ministro vem dando pistas de que pretende mexer no plano de saúde individual e empresarial, provavelmente o individual vai ser ambulatorial com cobertura reduzida. Embora o foco esteja no plano popular, desconfiamos que haja mudanças nos plano empresariais, com a adoção da ideia do VGBL na saúde”, diz, citando a sigla para Vida Gerador de Benefícios Livres, um seguro de vida com cláusula de cobertura à saúde.
Segundo Ocké, a ideia de uma nova categoria de plano que una assistência médica e previdência privada já vem sendo anunciada pela ANS desde 2011. Seria uma forma de um fundo de capitalização individual que, em tese, ajudaria a custear os gastos com saúde na velhice. “Isso vai pressupor recursos públicos, por meio de renúncia fiscal, num mix de poupança financeira com assistência médica atrativo num primeiro momento pela suposta vantagem de uma poupança que será sacada só em caso e doença. Mas como a probabilidade de um idoso ficar doente é grande, quando precisar de certos procedimentos vai ter que pagar do seu bolso porque o rol é muito limitado e terá franquia por uso”, explica.
Embora atenda um quarto da população, o setor privado concentra 53% de todos os recursos. Vende a ideia de melhor atendimento – um sonho de consumo de muita gente e item da pauta de sindicatos – graças aos subsídios públicos diretos e indiretos. É a sociedade pagando esse benefício que os empregadores dão aos seus trabalhadores, e ao subsídio fiscal, em que pessoas física e jurídica abatem seus gastos com saúde no imposto de renda. São recursos que o Estado poderia arrecadar e não arrecada. Os planos ganham também ao não ressarcir o SUS pelo atendimento prestado a seus clientes. Um levantamento recente da Folha de S.Paulomostrou que 30% das operadoras ainda não pagaram nem 1% do valor da dívida com o SUS. De 2001 para cá, deveriam ter sido ressarcidos R$ 2,1 bilhões. No entanto, 40% do valor não foi pago e nem parcelado para recebimento futuro, um valor estimado em R$ 826 milhões.
Com 47% dos recursos, o SUS é o plano de saúde da Michaella, Maria Zenilda, seus filhos e outros milhões de brasileiros, que têm promoção da saúde, prevenção de doenças, vacinas, vigilância sanitária, SAMU, atendimento a doenças médias e complexas, como cirurgias de grande porte, transplantes. Essa desproporção explica a dificuldade de acesso ao sistema e a qualidade baixa dos serviços muitas vezes com demora na realização de consultas, exames e cirurgias que acabam capitalizadas como propaganda em prol do setor privado.
Um quadro que tende a piorar na perspectiva de arrocho com a PEC 241. A previsão é congelar os investimentos por 20 anos, a partir de 2017, admitindo somente correção pela inflação do ano anterior. Ou seja, em 2036 a despesa da União deverá ser a mesma do mínimo constitucional fixado para 2016. Conforme o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), as aplicações mínimas de recursos destinados a ações e serviços públicos em saúde, atualmente regidos pela Emenda Constitucional 86, têm destinação crescente e escalonada dos recursos, calculados em percentuais de arrecadação da Receita Corrente Líquida, que no exercício de 2016 é de 13,2%.
Segundo as entidades, a EC 86, que substitui regra que vigorava desde 2000, a Emenda 29, reduziu os recursos da Saúde em 2016, com perdas da ordem de R$ 17 bilhões, se atualizados pelo IPCA. Além disso, a nova metodologia proposta pelo governo federal irá agravar o histórico subfinanciamento do setor. E mesmo que a arrecadação tributária aumente nos próximos anos, novos recursos financeiros não serão destinados necessariamente às áreas sociais.
A regra, desde 2000, é que estados apliquem 12% e municípios, 15%. Municípios, os que menos arrecadam, e estados respondem por 58% do total de gasto público em saúde, aplicando percentuais bem acima do que manda a Constituição. Em 2015 aplicaram, respectivamente, R$ 25 bilhões e R$ 6,4 bilhões além. “Para continuar oferecendo os serviços de atenção básica, temos aplicado 32% da nossa receita própria, mais que o dobro dos 15% que a Constituição determina”, diz o secretário municipal de Saúde de Osasco (SP), José Amando Mota. “Com os cortes no primeiro quadrimestre, posso dizer que não temos expectativa de executar o orçamento e nos manter no patamar de execução de 2015. Nosso teto financeiro vem sem correção há algum tempo.”
Fonte: Rede Brasil Atual