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Foi criado em 1992 devido à importância do tema epidemiologia do medicamento, com o objetivo de reparar a insuficiência de estudos epidemiológicos acerca desta questão, e para orientar a conduta terapêutica visando à redução dos riscos de iatrogenias.
Através de seus núcleos vem instrumentalizando e servindo de suporte para trabalhos de investigações epidemiológicas, de farmacologia clínica e de formação de recursos humanos, além de fornecer informações adequadas e sistematizadas sobre a utilização de medicamentos e seus riscos, dirigidas aos profissionais de saúde e população em geral.
Conheça alguns artigos publicados pelo CEMED:
2ª parte – Anorexígenos e Sibutramina… uma discussão complexa e uma decisão perigosa
ARQUIVADO EM ANFEPRAMONA, ANOREXÍGENOS, FEMPROPOREX, MAZINDOL, PROJETO DE LEI (PL) 2431/2013, SIBUTRAMINA, TRATAMENTO DA OBESIDADE
por Edson Perini e Daniela RG Junqueira
Na primeira parte dessas reflexões, publicada neste blog no dia 23/05/2013, iniciamos algumas considerações sobre o Projeto de Lei (PL) 2431/20131, de autoria do Deputado Felipe Bornier, proibindo a Anvisa “de vetar a produção e comercialização dos anorexígenos: sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol.” Argumentamos ser o mesmo um desserviço às conquistas realizadas no Brasil na área da Vigilância Sanitária e da Regulação de Medicamentos. Fizemos algumas ressalvas sobre a justificativa do projeto de cunho ético e político. Vamos continuar analisando essa justificativa agora sob o ponto de vista epidemiológico.
Nela é citado que o número de obesos aumentará com a retirada dos medicamentos anorexígenos e da sibutramina do mercado brasileiro. Ora, esses medicamentos estão no mercado há muitos anos, exatamente como o Sr. Deputado, autor do PL, ressalta (nas situações em que é interessante defender sua permanência no mercado). O autor se esqueceu que no longo tempo de permanência desses medicamentos no mercado eles nada resolveram em relação ao aumento da prevalência da obesidade em nenhum grupo ou faixa etária. Essencial então ressaltarmos: os medicamentos não têm poder de reduzir ou aumentar a incidência ou prevalência da obesidade. Portanto, sua ausência no mercado nada mudará em relação a isso. Quando muito, sua proibição provocará alguma falta na prática clínica, individual, para um uso transitório e arriscado, pouco efetivo além de um objetivo estético pontual no tempo, popularmente conhecido como efeito sanfona em uma referência visual simbólica ao emagrecer/engordar desses tratamentos, como o depoimento em reportagem da Folha de São Paulo assiná-la2. Não podemos, sob nenhuma circunstância no âmbito de qualquer racionalidade clínica, científica, epidemiológica ou política, pensar nesses medicamentos como se tivessem o poder de influenciar na incidência ou prevalência dessa enfermidade que, como problema de Saúde Pública, resulta largamente de hábitos e formas de vida que criamos (insistimos que os medicamentos nada farão na prevalência e nem na incidência, o que para uma doença crônica são realidades bastante díspares). Assim, do ponto de vista epidemiológico, base maior da decisão de retirada do mercado desses medicamentos, a justificativa de sua manutenção é uma nulidade lastimável.
Observamos atualmente diversos centros de pesquisas do mundo desenvolvendo estudos multidisciplinares para melhor compreender as formas de vida da sociedade contemporânea que resultam na elevação da prevalência de problemas como a obesidade, o diabetes e as alterações cardiovasculares. No Brasil, apesar dos esforços desenvolvidos pelo Sistema Único de Saúde, SUS, em políticas para a promoção da saúde e a prevenção de doenças, e que incluem diversas políticas para uma prática alimentar mais saudável, infelizmente a prática médica em torno da obesidade continua concentrada no binômio medicamentos e cirurgias. Sabemos que nem sempre a mudança de hábitos de vida resulta no controle eficiente da obesidade e isso ocorre exatamente porque influências multifatoriais – ambientais, genéticas, sociais, culturais, arquitetônicas e de estilo de vida – concorrem para a determinação do problema. De qualquer forma, nesse contexto de determinantes genéticos e clínicos complexos, os medicamentos disponíveis apresentam-se pouco eficazes e com elevado perfil de riscos, e não substituem essas mudanças. Mesmo como coadjuvantes dessas medidas, não podem ser adotados como solução de longo prazo. Assim, uma leitura mais atenta e cientificamente criteriosa da justificativa do PL facilmente reduzirá o valor terapêutico desses medicamentos a quase nada.
Mais adiante na justificativa,o autor sugere que, em lugar de proibir o uso dos anorexígenos em questão, deveríamos pensar em adotar medidas restritivas e de racionalidade do uso. No entanto, o mesmo texto admite a existência de tais medidas e que as mesmas são adotadas pelo controle rigoroso da prescrição, processo que já foi objeto de elogios internacionais ao Brasil. Assim, seria justo solicitar ao autor do PL e aos defensores dos medicamentos anorexígenos e da sibutramina, um esclarecimento acerca desse contraditório: se as medidas existem, implicitamente devemos concordar que não são cumpridas adequadamente pelos meios profissionais – prescritores, comerciante se consumidores – dado que a proposição de retirada do mercado levou em consideração um cenário em que o consumo mostrava-se estapafúrdio e perigoso, mesmo com essas medidas em vigor. Assim, é fácil justificar um PL responsabilizando a Anvisa se esquecermos que nenhuma fiscalização pode ser realizada o tempo todo em todos os locais do país. Por essa impossibilidade, os profissionais, detentores de diploma superior e sob juramento ético, são os maiores responsáveis pelo uso adequado de produtos regulamentados. Isso ocorre em todos os setores da sociedade e é um princípio básico da responsabilidade de cada um. Se isso não ocorre, estamos diante de um problema de corrupção de valores, que esse projeto não vai mudar, assim como a nossa extensa legislação não interrompe a corrupção nos meios políticos. Muito pelo contrário, o projeto dirá para a sociedade que a corrupção dos valores é algo moralmente aceitável em nosso meio pois, quando coibida, profissionais e políticos se voltam contra os instrumentos que buscam esse controle estabelecido cientificamente, utilizando-se de justificativas mal embasadas cientificamente.
Seguimos analisando outras questões envolvidas na discussão, agora referentes à participação dos seus defensores. Reafirmamos reconhecer a autoridade das associações profissionais que apoiam o projeto, e as temos por referências importantes e dignas de nossa boa fé. Mas, do ponto de vista terapêutico e epidemiológico, ressaltamos veementemente que a prática clinica isolada, ainda que antiga, não se presta ao balizamento de avaliações de riscos aprofundadas, em especial do ponto de vista coletivo. O mesmo vale para a defesa baseada no tempo do produto no mercado, o que não quer dizer muito, às vezes nada. Se assim fosse a lógica científica nenhum medicamento ou intervenção em saúde seria abolida.Sabe-se ainda que o clínico, em sua prática, raramente percebe o problema das reações adversas ao uso de medicamentos – eventos caracterizados por uma lógica de imputabilidade complexa, muitas vezes delonga janela etiológica. Em sua prática cotidiana,o clínico usualmente se limita à detecção das reclamações mais agudas que mantenham relação causal mais imediata com a doença de base diagnosticada. Quanto à permanência de um produto no mercado, ela é muitas vezes a resultante do jogo de forças políticas e econômicas desfavoráveis à racionalidade científica do uso (qualquer semelhança com a dipirona, abolida em muitos países e vendida livremente no Brasil, não é mera coincidência). Por isso, existe a Farmacovigilância, que deve ter suas ações respeitadas na regulação do mercado pela competência já demonstrada ao longo de sua história, inclusive sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde.
É bom ressaltar que os profissionais envolvidos na questão do uso dos medicamentos com qualidade, os quais são convocados à responsabilidade pelo Sr. Deputado, são conscientes de que devem tomar decisões baseadas em defesas isentas e com foco nos interesses reais dos pacientes. Porém, a literatura científica discute vigorosamente o fato de que mesmo os profissionais de saúde comumente não realizam decisões com base em evidências científicas de qualidade, atualizadas e balanceadas segundo a relação entre riscos e benefícios. Decisões políticas em saúde – considerando-se adicionalmente as rotineiras denúncias de associação entre interesses econômicos e setores produtivos, profissionais e políticos -apresentam elevado potencial de viés. Assim, aprofundando um pouco mais nossa estranheza em relação ao debate: o relator da proposta, deputado Dr. Paulo Cesar (PSD-RJ), critica a Anvisa por não informar adequadamente a sociedade. Ora, a Anvisa o fez com sucesso3 e proporcionou amplo acesso às análises que nortearam as ações que se amplificam na discussão atual. Uma simples busca com a palavra sibutramina na página eletrônica da Anvisa retorna vários alertas e notícias. No entanto, em nossas buscas, encontramos ainda uma nota na página da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO)4 destacando fala do representante da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Daniel Vasconcellos, afirmando que a Anvisa não consegue controlar e fiscalizar as drogas (um pouco de atenção e percebemos nova contradição em relação à justificativa do PL).
De qualquer maneira, num momento em que a Anvisa exerce sua missão superior que é garantir a segurança dos usuários de medicamentos, numa decisão cientificamente histórica para um país ainda imaturo nesse processo, e já adotada em vários países, esse representante da SBC se apresenta afirmando que o SUS não funciona, não obstante o fato de estarmos diante de uma ação de Farmacovigilância e Regulação em Medicamentos, prerrogativas desse sistema. Sabendo que esses são conhecimentos tradicionalmente ausentes na formação de nossos clínicos, não podemos resistir à pergunta: o que é o SUS para a SBC? A Anvisa não faz parte? O que é o SUS? Também não seriam as academias da cidade e todo o conjunto de outros tratamentos que oferece a uma imensidão de pacientes? E então nos deparamos com uma matéria, agora da Agência Câmara de Noticias5, que descreve textualmente: “Já o representante da Sociedade Brasileira de Cardiologia, [o mesmo]Daniel Vasconcellos, afirmou que a sociedade apoiou a decisão de retirar do mercado esses medicamentos”. Resta-nos perguntar em quem devemos acreditar diante de tantas contradições: ABESO, SBC, Agência Câmara de Notícias, na indústria de medicamentos ou no PL em tramitação?
A Anvisa cumpriu sua missão de avaliar a eficácia e segurança dos medicamentos do mercado brasileiro, informou a sociedade e discutiu o assunto. No entanto, os representantes de interesses contrários aos da Anvisa, além de não terem sido nem convincentes nem lógicos em seus argumentos, colocaram a Anvisa, e toda a evolução de um país na esfera do uso do medicamento com qualidade, em situação de alto risco de perda de credibilidade. E isso é muito mais perigoso do que as justificativas que usam para a defesa dos produtos em questionamento. Insistimos que a forma como defendem tais produtos é perigosa. Desacreditam uma conquista social fundamental da nossa sociedade, a Anvisa, e tentam junto desacreditar o SUS. Justificam-se cientificamente muito mal. Se existem evidências científicas mostrando que esses produtos carregam muitos riscos, diante de benefícios questionáveis, e se a Anvisa as levou à discussão, cabe aos defensores apresentar o contraditório na mesma linha de raciocínio, cientificamente embasada. E essa linha racional está distante das justificativas apresentadas no referido PL. Nem sempre podemos ser vencedores em nossos argumentos, mas eles devem ser cientificamente fortes, e não vimos nada próximo a isso na justificativa do PL, nem nas reportagens que citamos sobre o assunto. Apresentem os dados para que possamos analisar. Dizer que em minha (ou nossa) experiência clínica isso é bom ou ruim é pouco, perigoso, e muito fora do tempo científico atual.
Nessa hora, ao terminar esse texto, não podemos evitar uma nova pergunta: o que está realmente em jogo? O benefício dos pacientes, defendido pelos seus médicos em suas percepções clínicas, ou os milhões de dólares que esse mercado representa, defendido pela indústria? E mais, proibindo a Anvisa de agir agora, quem irá agir depois, e com que autoridade, quando todos estiverem convencidos de que pacientes se arriscam a usar um medicamento sem garantia científica de um benefício real e duradouro,mas nossas instituições estiverem fragilizadas por atitudes políticas fortes porém cientificamente deficientes? Aos detentores do mercado de medicamentos, certamente o depois não importa,se o mercado estiver garantido hoje.
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